Sexta-feira, Março 21, 2025
InícioColunistasUm Retrato das Prisões Brasileiras - Parte 1

Um Retrato das Prisões Brasileiras – Parte 1

Paredes altas que, interligando-se, serpenteiam por dezenas/centenas de metros, apenas interrompidas por guaritas/torres com policiais penais armados, demarcam os limites físicos e territoriais que separam os presos do restante da população. Dois mundos diferentes, com valores e regras distintas, e a única identidade sensível aos olhos é que a classe discriminada e despossuída do mundo externo é a que também habita a parte intramuros.

Internamente, um contingente de pessoas que superlotam praticamente todos os seus claustrofóbicos espaços (cubículos, galerias, pavilhões etc).

O ingresso formal do preso em um complexo prisional, feito por meio de sua inserção no sistema penitenciário e pelo procedimento de triagem, já é uma mostra clara do que o aguarda em sua estada: a desmoralização inicial, que começa na raspagem da cabeça até os atos de zombaria e intimidação costumeiros, é um indicativo claro de que, no presídio, o homem se transforma num animal em cativeiro: a despersonalização é essencial.

Esvazia-se, portanto, o homem, se retira dele tudo o que ainda lhe restava de dignidade, afasta-se dele qualquer sentimento de humanidade. Deixa-se claro, ao detento, que ali nada será fácil, pois não existe compaixão: na prisão, por vezes o sadismo estatal se impõe, senão por todos os funcionários dos estabelecimentos prisionais, logicamente, mas ainda por alguns que se acreditam justiceiros, carrascos, executores e cuja missão parece ser tão-somente fazer com que o apenado receba um mal superior àquele que causou com a sua conduta criminosa.

É certo que dentre os aprisionados há pessoas que praticaram atos desprezíveis e dos mais repugnantes (ex: homicidas, estupradores, traficantes, sequestradores etc.), mas quando deles se extirpa o pouco de dignidade que ainda lhes resta estamos, ao mesmo tempo, dando mais espaço à maldade e aos sentimentos contidos de raiva e ódio que orientaram os estímulos destrutivos que os levaram à delinquência.

E o sistema penitenciário brasileiro potencializa isso.

Imperativos de respeito à integridade física e moral pregados pela Constituição Federal, pelo Código Penal, pela Lei de Execução Penal ou por Estatutos Penitenciários estaduais têm tímida influência no ambiente prisional, em especial quando se percebe que, em geral, quem manda dentro das prisões são os presos, pois o Estado desde muito já perdeu – e por sua culpa – o poder de controlar as penitenciárias:

“O Primeiro Comando da Capital domina o estabelecimento [Centro de Detenção Provisória I de Pinheiros/SP]. Na entrada, na cela destinada à triagem (que se encontrava entupida de presos), existe uma inscrição enorme da sigla PCC. É como se cada preso ao entrar no presídio fosse obrigatoriamente batizado pela facção. Diversos presos se declararam filiados ao PCC e elogiaram a sua política de assistência. Alguns afirmaram que “o PCC é a sua família”. Indagado dos motivos desta paixão os presos responderam que o PCC é melhor do que o Estado” (CPI do Sistema Carcerário 2009).

As camas (bases de concreto insuficientes em razão da superlotação) quase sempre já têm donos: ou se paga para ter um lugar adequado para dormir – e a moeda que mais corre nas prisões são cigarros, drogas, celulares, dinheiro e, para alguns, o uso do próprio corpo para satisfação da lascívia de outrem – ou vai dormir na “praia”, perto do “boi” (buraco sanitário), no chão duro ou em colchonete, e isso quando há um disponível ou é alugado de outro preso.

A superlotação de cadeias e penitenciárias é vez por outra registrada por vídeos feitos pelos próprios detentos que revelam à sociedade um amontoado de pessoas jogadas umas sobre as outras em busca de um espaço para ficar. Quando tais vídeos se tornam públicos, envergonhando as autoridades locais, o que se faz não é resolver, em definitivo, o problema, mas apenas mandar no “bonde” (transferência) uma meia-dúzia dos que reclamam para outro local apinhado de gente, e de preferência pior.

O Código Penal das cadeias e penitenciárias não é escrito, e a pena é aplicada com celeridade e rigor: a necessidade de se manter certa ordem e coerência internas para conservar a própria integridade individual ou segurança contra os grupos rivais exige que a desforra seja sempre aplicada quase que imediatamente ao fato reprovado, e vai desde o ato de desprezo dos colegas, passando por um corretivo físico e, em alguns casos, alcança a própria pena capital.

O preso, que está subordinado ao poder formal e simbólico do Estado, é também subjugado pelo poder material e efetivo de outros presos. Uma ordem para matar, se emitida pelo liderança, é bem mais persuasiva que qualquer contraordem vinda de tipificação penal, e o próprio Estado precisa muitas vezes negociar com os líderes para impedir as rebeliões:

“Questionados, o diretor do presídio e o chefe de segurança confirmaram que existem facções na cadeia [Presídio Central de Porto Alegre]: “Os manos”, “Abertos”, “Unidos pela Paz” e “Os sem facção” são as organizações criminosas que dominam o presídio, além do Primeiro Comando da Capital. Uma vez por semana há uma reunião entre a PM, chefe de segurança da cadeia, e os líderes e representantes da facção. Segundo os policiais, essas reuniões com as lideranças das organizações são uma forma de manter a paz no presídio. Há concessões em troca da suspensão de rebeliões” (CPI do Sistema Carcerário 2009).

Os funcionários, normalmente em número insuficiente e desproporcional à população aprisionada, têm poder de mando quase inexistente ou, quando muito, reduzido a espaços físicos e horários específicos: “[…] os carcereiros só entravam nos raios para fechar as celas no fim da tarde e abri-las às oito da manhã. No resto do tempo, da gaiola de entrada para dentro o comando ficava por conta dos líderes de cada raio: o ‘piloto’ e seus auxiliares”.

Delatores (x9), estupradores (duque), caçadores de ladrões (justiceiros), presos que desrespeitam as visitas ou a mulher de outro detento, aqueles que não pagam dívidas de drogas ou não cumprem as ordens impostas, dentre outros que pisam fora da linha ditada pelo Crime não podem ficar no convívio com os demais, e são normalmente moradores do Seguro, pois em caso de rebelião, ou mesmo de vingança por desafetos, os funcionários não têm muito a fazer para preservar-lhes as vidas: “A gente faz o que pode, mas infelizmente aqui não existe lugar seguro. Quando eles decidem matar alguém, é muito difícil impedir” (CPI do Sistema Carcerário 2009).

Continua…

Foto: Instituto Penal Paulo Sarasate – IPPS – Autor desconhecido

Google search engine
Google search engine
Google search engine

Ultimas Noticias