Na prisão o medo impera: funcionários têm medo dos presos; presos têm medo dos policiais do DEPEN; presos têm medo dos próprios presos. Se estourar um acerto de contas dentro da penitenciária é muito improvável que alguém vá intervir, e esse clima de tensão não é algo agudo e passageiro, mas uma situação crônica e duradoura, pois está presente no dia a dia das penitenciárias em geral, que são autênticas bombas-relógio.
O mundo da prisão, como já referido na parte 1, é um mundo diferente, os valores que nele habitam são estranhos aos prezados do lado de fora. De que adiantará buscar a reabilitação do apenado nesse ambiente inóspito às regras de bom trato e convivência social que a sociedade estima? O ser humano é um ser mimético, aprende por imitação, e o ambiente prisional condiciona o aprendizado de quem nele se encontra.
Há presos chamados laranjas que assumem crimes de outros detentos em troca de uma vantagem imediata. Em regra, esses laranjas são usuários de craque e de maconha, por vezes até endividados com os traficantes. Há ainda os detentos que assumem faltas de colegas de cela (ex: droga achada no cubículo etc.) para não os delatar e sofrer retaliações, restando-lhes apenas um crédito futuro e a esperança de gratidão do culpado. Estes últimos são chamados de sangue-bom, são aqueles nos quais os demais presos podem confiar (afinal, assumiram faltas/crimes que não cometeram). Em qualquer caso (laranja, sangue-bom) são inocentes, e o ambiente prisional não permite que possam sequer tentar escapar de punições injustas, pois isso colocaria suas vidas em risco.
A extorsão, prática comum nas penitenciárias, transcende, em alguns casos, aos próprios internos, dirigindo-se aos seus familiares que são coagidos a emprestar contas bancárias para transferências de valores de origens no mínimo duvidosas, a tentar fazer entrar na prisão substâncias e produtos ilegais (entorpecentes, armas, celulares etc.), a levar recados potencialmente criminosos a bandidos que estão na rua etc., tudo porque, se não assentirem com isso, quem sofrerá as consequências é o familiar que está aprisionado e que, de uma hora a outra, pode simplesmente aparecer enforcado em sua cela ou retalhado por golpes de faca.
Há situações, inclusive, em que a extorsão é praticada até por funcionários, conforme descreveram as presas do 53° Distrito Policial do Rio de Janeiro quando da inspeção realizada pela CPI do Sistema Carcerário:
“Denunciaram que os familiares pagam de R$5,00 a R$10,00 para levar comida e que os agentes cobram R$15,00 de cada visitante por visita. Quem não paga não entra” (CPI do Sistema Carcerário 2009).
A precariedade da situação carcerária (superlotação, comida estragada, insegurança constante, desconfiança de tudo e de todos etc.) é um estopim para motins, revoltas, tentativas de fuga, assassinatos e até a rendição de funcionários como reféns, e muitas vezes a única maneira de o Estado recuperar a disciplina é na base da pancadaria contra os presos pelo emprego, em dadas ocasiões, excessivo e desnecessário das forças policiais dos setores de operações especiais (ex: SOE/PR) e/ou grupos de intervenção rápida (ex: GIR/SP), ou com as consequentes punições coletivas e generalizadas praticadas na contra-mão do que dispõe o art. 45, § 3° da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984), que veda essa prática.
Talvez com menor frequência do que outrora, as retiradas de presos à noite, na surdina, para uma “conversa” informal, para fazer o “passarinho” cantar, onde a vontade de colaborar é corriqueiramente estimulada por castigos físicos, ameaças ou até chantagens sobre fatos que colocariam a vida do detento em risco se seus colegas de cela soubessem, ainda são praticadas em nossos presídios (principalmente em cadeias públicas), e sem nenhuma punição aos responsáveis; muitas vezes ocorrem sem qualquer finalidade senão satisfazer o desejo sádico dos torturadores.
Os policiais penais têm acesso a dados dos prontuários dos internos, e a decisão de ocultar ou divulgá-los, total ou parcialmente, a depender do seu conteúdo, lhes dá um verdadeiro poder de vida ou morte sobre o preso, em especial quando se trata de um X9 (delator), de um duque (estuprador), de um integrante de facção contrária a que domina o presídio (ex: Primeiro Grupo da Capital x Primeiro Comando da Capital nos Estados do Sul do Brasil), dentre outros casos.
É certo, e isso precisa ser frisado para que não se faça injustiça, que não se pode generalizar a ponto de afirmar que todos os funcionários das penitenciárias são corruptos ou têm condutas imorais. Bem longe disso, a grande maioria, felizmente, é servidor público honesto e dedicado as suas atividades. Todavia, e tal como ocorre com qualquer outra profissão, há aqueles que andam do lado de lá da linha da legalidade e se aproveitam das agruras dos presos para lhes vender algumas facilidades, desde a mera transferência de uma cela/pavilhão para outra, até regalias ilegais em dias de visita ou colocação em postos de trabalho para fins de remição de pena (ou mesmo simulação de trabalho que não foi prestado), atos que mais tarde tendem a se inclinar a condutas mais graves e que resultam no repasse de celulares, drogas e até mesmo de armas aos internos. Esses, cedo ou tarde, trocarão sua posição de vigia pela de vigiados.
Não se pode esquecer, ainda, que a desunião dos presos é constantemente aproveitada por alguns policiais penais que estimulam o detento à traição, à chantagem e à própria corrupção, ainda que o façam movidos pela boa vontade de, com isso, manter o “controle” do presídio dado o número sempre insuficiente de funcionários. Diz-se isso porque, às vezes, um favorecimento ilegal a um recluso o leva até a delatar uma tentativa de fuga, a informar sobre a chegada de drogas, indicar onde estão escondidas armas e celulares etc. Esse toma lá dá cá é prática usual na prisão.
Mas, a menos que os fins justificassem os meios, tentar ressocializar alguém corrompendo a sua moral – instigando o recluso a ser beneficiado e tomar gosto pela trapaça, pela deslealdade etc. – é um método bastante criticável, pois quando em liberdade ele agirá da mesma forma para obter vantagens em sua vida livre.