Além da questão alimentar, há ainda outras necessidades humanas e de caráter puramente fisiológico que criam complicações na prisão.
A abstinência sexual é uma delas, e pode causar sérios distúrbios psíquicos nos presos: “Especialmente quando imposta contra a vontade do indivíduo, como ocorre na prisão, não deve a abstinência sexual ser mantida por períodos prolongados, porque contribui para o desequilíbrio e favorece condutas inadequadas” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão […], 2017, p. 220).
A promiscuidade no cárcere, manifestação de desejos lascivos não controlados e que resulta em práticas sexuais desregradas e desprotegidas, embora reduzida sensivelmente quanto aos presos que recebem visitas íntimas da esposa, da namorada ou até de prostitutas, ainda é a responsável por uma grande parte dos estupros.
O abuso sexual de presos, para satisfação da volúpia ou mesmo por motivo de vingança ou retaliação, é uma violência inerente à prisão e historicamente presente não só nos presídios brasileiros, mas praticamente em todas as prisões do mundo, causando danos não apenas à liberdade e dignidade sexual da vítima, mas danos ao corpo, à saúde e à integridade física e, em alguns casos, só antecede à pena capital.
Doenças sexualmente transmissíveis como a AIDS, por exemplo, ainda têm lugar nas penitenciárias, embora tenha diminuído. Nos idos dos anos 90 a transmissão não se dava necessariamente pelo ato sexual, mas também pelo uso compartilhado de seringas entre usuários de cocaína e que a injetavam diretamente na veia (“baque”), disseminando a doença através da circulação sanguínea. De tempos para cá, contudo, a aplicação endovenosa perdeu lugar para o crack que, pela rapidez dos efeitos – pois é fumado e cai direto nos alvéolos pulmonares – e também por ser uma droga mais barata – logo, mais acessível à população pobre que lota as prisões – se tornou por um tempo a droga das cadeias. Porém, por conta do seu alto poder destrutivo o crack tem seu uso não recomendável pelos próprios presos – haja vista que coloca em risco os colegas de cela diante das paranoias constantes de perseguição (ex: a polícia vai entrar pela janela, o inimigo está embaixo da cama, algo de ruim está para acontecer…) – e atualmente cede espaço à maconha.
Some-se a isso a alta incidência de presos com tuberculose (a “doença do cárcere”), hepatite, dermatites diversas (alergias, sarna, infecções etc.), hipertensos, diabéticos, asmáticos, viciados em droga e álcool e outras tantas comorbidades que não encontram condições mínimas de um tratamento adequado nas prisões .
Em 2020, já sob os efeitos da epidemia do coronavírus, um preso de uma penitenciária local relatou que ficou uma semana inteira o tempo todo deitado, com dor no corpo, com febre alta, calafrios e outros sintomas da Covid-19, e que sua solicitação de atendimento médico não foi nem mesmo levada a conhecimento da Direção, o que evidencia o descaso com a saúde dele e dos demais.
No setor de carceragem da cadeia pública de uma cidade da região sudoeste do Paraná, um preso informou que os funcionários do DEPEN advertiram a todos os reclusos que, se “surgisse” algum caso de Covid-19 entre os prisioneiros – leia-se, se os presos reclamassem dos sintomas e solicitassem uma consulta médica – a primeira medida seria a de barrar a entrada de encomendas enviadas pelos familiares, prejudicando a todos, o que demonstra uma clara chantagem estatal contra pessoas que nada podem fazer.
O acesso à saúde pelos presos é, em geral, catastrófico, tal como ilustra a situação abaixo vivenciada na Penitenciária Feminina de Brasília:
“Uma presidiária informou que somente depois de implorar por 03 dias conseguiu atendimento médico para a sua forte dor abdominal, proveniente de gastrite nervosa. Disse que enquanto sofria de dor, os policiais zombavam dela, “mandando-a rezar”. Denunciou que uma detenta, de origem peruana, sofreu um aborto por não contar com assistência médica” (CPI do Sistema Carcerário 2009).
Drauzio Varella, renomado médico que há décadas prestou trabalho voluntário em carceragens brasileiras, dentre elas o Carandiru – presídio famoso em razão do massacre ocorrido em outubro de 1992 –, descreve com precisão as enormes dificuldades que encontrou para exercer a medicina junto à população prisional:
“O número de doentes que vinha dos pavilhões para atendimento ambulatorial aumentava sem parar. […] Eu tinha que ser rápido: ouvir as queixas, palpar, auscultar, olhar, fazer o diagnóstico e receitar o medicamento em cinco minutos no máximo. Sem errar, se possível. Medicina de antigamente: ouvir, examinar e dar o remédio. Inútil solicitar exames laboratoriais porque os resultados, quando vinham, não chegavam a tempo de auxiliar na conduta. Uma velha máquina de raio X passava semanas quebrada ou aguardando licitação para a compra de filme radiográfico. Dificuldades não faltavam. A medicação prescrita percorria complicadas vias burocráticas, e, nas frequentes transferências dos detentos de um pavilhão para o outro, perdia-se no caminho. A burocracia era tanta que as internações e altas da enfermaria eram batidas em seis cópias, trazidas para assinar sem papel-carbono. Muitas vezes, como é característico no serviço público, existia fartura de antibióticos e antivirais caríssimos, enquanto falta aspirina e remédio para sarna”. (VARELLA, Drauzio. Carandiru, 2012, p. 212).
Porque estarrecedora, cita-se ainda a situação indigna de detentas que se utilizam de miolo de pão para substituir os absorventes íntimos:
“Quanto aos absorventes, quando são distribuídos, são em quantidade muito pequena, dois ou três por mulher, o que não é suficiente para o ciclo menstrual. A solução? As mulheres pegam o miolo do pão servido na cadeia e os usam como absorvente”.
No caso das mulheres presas, ainda que em número bem menor que a população masculina, o problema carcerário é muito mais grave, porque o Estado assume desconhecer – ou, se conhece, não se importa – com a condição feminina, seja em relação à higiene básica, seja nos casos de presas gestantes e de crianças recém-nascidas e que precisam de atenção especial, seja no fato de que as presidiárias são frequentemente muito mais abandonadas na prisão, pelos familiares e companheiros, que os homens , ou até mesmo porque são vítimas de abusos sexuais e, às vezes, postas em celas masculinas.
Veja-se, a propósito, trecho do depoimento da delegada Flávia Verônica Monteiro Pereira, lotada à época na Delegacia de Abaetetuba, no Pará: “Que sabia que havia uma mulher presa, porém quanto à acomodação da presa cabia ao sistema penal, bem como comunicou o fato à Juíza, ao Ministério e à Defensoria pública mediante ofício, embora soubesse que a mulher autuada estava sendo colocada em uma cela com 20 homens que praticaram homicídio, tráfico de drogas, possivelmente estupro e outros. […] Que tinha consciência de que a menor poderia sofrer abusos sexuais e que não era correto colocar a menor presa com homens e que a sua conduta enquanto delegada de polícia não lhe dava respaldo para que ela decidisse se aquela situação era justa, humana ou desumana, mas apenas aplicar a lei. Que naquela cadeia ocorreram outros casos de mulheres presas na cela com homens” (CPI do Sistema Carcerário 2009).
continua…